plural

PLURAL: os textos de Juliana Petermann e Eni Celidonio

Amizade
Juliana Petermann 
Professora universitária

style="width: 25%; float: right;" data-filename="retriever">

Embora estejamos em meio a uma grave e triste crise sanitária e política, permitam-me relatar algo sensível do meu cotidiano. Eu nunca mais quis ter um cachorro depois que a minha cadela Lassie morreu atropelada. Eu tinha uns 5 anos. Acho que todo mundo teve uma cadela Lassie. Eu tive e foi a última. Depois dela, os gatos passaram a ser a minha estimação: mais caseiros não se incomodam de fazer do seu mundo inteiro a casa e, resguardados, correm menos riscos.

Mas Claudiomiro, um cusco vira-lata de porte médio, mais branco do que preto, e com um pouquinho de amarelo, passou a visitar o meu pátio. Escolhemos o nome tal qual o do ex-jogador do Internacional. Dias depois, descobrimos que ele tinha tutor e nome. Cebolinha, tal qual o ex-jogador do Grêmio, havia sido adotado e batizado pelo meu pequeno vizinho da casa ao lado. Cão dócil, dividia sua simpatia entre as casas da rua.

CEBOLA E PEPE

Um belo dia, eis que surge, do alto da sua elegância, Pepe. Tal qual o ex-presidente uruguaio. Um provável Collie, tão branco quanto preto, que havia sido adotado pela minha vizinha da frente. Não sei se foi pelas cores, pelo porte, ou pelo afeto mesmo, esses dois cuscos se tornaram os melhores amigos. Pepe e Cebola: inseparáveis. Os dois viviam entre a casa ao lado, a casa da frente e a minha. A dupla oferecia cuidado e amizade para a coxilha toda. Quando cheguei com meu bebê, saindo da maternidade, já na porta, nos esperavam os dois. Umas cheiradinhas para reconhecer o novo morador. Todos os dias me acompanhavam na corrida matinal. Era abrir a porta e lá vinham os meus amigos correndo para correr comigo. Eram cão de guarda nos passeios com meu bebê: desde de que ele ia no colo, no carrinho, na motoca e, agora, a dupla acompanhava suas tentativas de dar os primeiros passos.

INSEPARÁVEIS

Dias atrás, meu bebê caminhou e foi a coisa mais linda que eu já vi. Mas a notícia que se seguiu foi de cortar o coração: os inseparáveis Pepe e Cebola partiram juntos. Possivelmente, tenham dividido a última ceia que alguém, sem nenhum coração lhes preparou. Envenenaram os amigos. Os meus amigos. No dia seguinte, a coxilha acordou silenciosa. Um barulho de vento, que era quase um choro pela falta que a dupla faz. O gramado amanheceu sem a pintura preta e branca dos dois. Abro a porta cedinho e nenhum focinho se convida para entrar. Eu, que não queria mais ter cachorro, arrumei dois amigos e, agora, sentirei muito a falta deles.

Depois que este artigo foi finalizado, outro cão da vizinhança foi morto e outra cusquinha está desaparecida.

Tá difícil 
Eni Celidonio 
Professora universitária

style="width: 25%; float: right;" data-filename="retriever">

As coisas estão cada dia mais difíceis... A gente tem que ficar o tempo todo de orelha em pé, prestando a maior atenção no entorno, porque, uma palavra mal colocada, dita intempestivamente, pronto! Lá vem uma tese de doutorado, com direito a notas de rodapé e bibliografia. Duvida? Então, olha só o que presenciei e veja se não tenho razão.

UMA CONVERSA COMPLEXA

Eu fazia doutorado na UFRGS e ia a Porto Alegre todas as terças-feiras, no ônibus da Planalto das oito e meia da manhã e voltava na quinta, no ônibus das dezoito e trinta, depois da aula da professora Tânia Carvalhal. Não preciso dizer que eu voltava para casa exausta, porque a viagem é longa, cansativa, tanto que hoje não faria isso por dinheiro nenhum do mundo. Mas posso dizer, sem o mínimo medo de errar, que nada, mas nada faz a gente ouvir tanta coisa tosca como uma viagem de mais de quatro horas de ônibus.

Cheguei na rodoviária, o ônibus já estava lá, guarda malas, carrinhos de bebê, as pessoas já iam entrando com suas passagens na mão, aquilo de sempre. Entrei, me sentei no banco da janela, do lado do motorista (não sei porque, mas sempre escolho lugares na janela e do lado do motorista) e, na minha frente, sentam-se uma moça com um bebê no colo e, ao seu lado, um senhorzinho de, no mínimo, uns oitenta anos, daqueles bem simples, que fumam cigarro de palha e guardam dinheiro dobrado no bolso.

O ônibus sai, depois de o motorista aparecer e fazer aquela ladainha de sempre. Para quebrar o gelo, ou sei lá por que, o senhorzinho puxa assunto com a moça:

- Bem bonitinho seu bebê. Como é o nome dele?
- João, mas pode ser Joana, Mariana, ou qualquer nome que ele vier a escolher depois.
- Ué... Mas por que ele ia escolher outro nome, e de mulher, ainda por cima?
- Porque ele pode ser transgênero, e daí vai ter a liberdade de mudar o nome, ter pelo menos um nome social, respondeu a jovem mãe.
- Ah... Não entendi muito bem, mas a menina quer dizer que não sabe o que o filho é?
- Não. Ele nasceu menino, mas isso pode mudar.
- Ah, pode é? Lá fora nasce boi ou vaca, cavalo ou égua, e até hoje nunca vi nenhum bicho mudar não... Por que mudaria?
- Senhor, animais são uma coisa, gente é outra. Às vezes, o gênero que a gente nasce não combina com o gênero ao qual a gente se identifica...
- Não? - respondeu o senhorzinho, cada vez mais surpreso.
- Não. Não mesmo!
- Mas isso tem muito tempo ou foi só agora? Eu nunca ouvi falar nesse tal de trans. Aliás, conheço gordura trans, e lá perto da minha fazenda tem um sujeito que planta milho transgênico. É a mesma coisa?
- Não. Sabe, isso é uma discussão que leva muito tempo, demanda muitas leituras sobre gênero, questões LGBTQI+... Não tem como explicar pro senhor em algumas horas... Eu, por exemplo, leio sobre isso há pelo menos uns quinze anos.
- Que coisa mais maluca! Quando eu tinha a sua idade, a gente namorava, casava, tinha filhos, "as menina" eram criadas como menina e "os menino" como menino, cada um com um nome que a gente escolhia. Eu tenho oito filhos, "cinco homem e três guria", e mais um monte de netos, acho que uns vinte e cinco!
- Todos cis?
- Não! Tudo colorado que nem eu, graças a Deus...

Carregando matéria

Conteúdo exclusivo!

Somente assinantes podem visualizar este conteúdo

clique aqui para verificar os planos disponíveis

Já sou assinante

clique aqui para efetuar o login

Equívocos e esperanças* Anterior

Equívocos e esperanças*

O futuro da Terra está em nossas mãos? Próximo

O futuro da Terra está em nossas mãos?

Geral